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Vírus e extinções na era do antropoceno
Dernière mise à jour : 5 mai 2020

Foto da exposição Anthropocene na Art Gallery of Ontario, novembro de 2018.
Escrito por Ana Carolina Peliz
Em 2018 visitei a exposição Anthropocene na Art Gallery of Ontario, a AGO. No texto de apresentação do projeto fotográfico, os autores Edward Burtynsky, Jennifer Baichwal e Nicholas de Pencier explicavam que o objetivo do trabalho não era acusar, mas revelar e examinar a influência humana na face da Terra, tanto em uma escala planetária quanto geológica. Apesar dessa noção existir há um certo tempo, confesso que foi a primeira vez que entrei em contato com ela.
A ideia de que a humanidade mudou de tal maneira a biosfera, chegando a estabelecer uma nova era geológica, foi cunhada pelo prêmio Nobel de Química holandês Paul Josef Crutzen e ganhou força no início dos anos 2000. Para ele, a nova era do Homem teria começado no final do século XVIII, mesma época em que James Watt inventou a máquina a vapor, à origem da Revolução Industrial. O antropoceno sucederia então o holoceno, era interglacial que começou há mais de 10 mil anos e ajudou a expansão das sociedades humanas.
Na exposição da AGO, uma sucessão de fotos e vídeos mostrava como, em apenas dois séculos, o Homem alterou duravelmente o sistema terrestre. Estranhas esculturas de concreto invadiam o litoral de cidades chinesas para barrar o aumento do nível do mar, uma máquina gigantesca, que poderia ter saído do imaginário de um autor de ficção científica, furava a terra para extrair carvão na Alemanha e um homem andava solitário entre montanhas de plástico em um aterro em Nairóbi
Impossível escapar do paralelo entre nossa ação na Terra e a de um vírus no corpo humano que, para se desenvolver, parasita as células do organismo contaminado. Um dos principais sintomas das viroses é a febre. Um dos principais sintomas da ação humana é o desequilíbrio das temperaturas do planeta, o aquecimento global.
Se somos um vírus, talvez sejamos o mais adaptável de todos. O Homem é a única espécie capaz de sobreviver e mesmo viver nos mais diversos ambientes: gelados, húmidos e áridos. Sei que é um paradoxo dizer isso em meio a uma pandemia mundial em que o número de mortos aumenta a cada dia, mas somos resistentes. Nenhum SARS, MERS e gripe espanhola foi capaz de nos erradicar. A ciência e a tecnologia permitiram aumentar nossa esperança de vida de maneira impressionante.
Como todo vírus, nossa natureza nos faz ser muito ruins com outras espécies. Ao longo dos últimos quinhentos milhões de anos, o mundo passou por cinco extinções em massa. A sexta, que segundo cientistas já está acontecendo, pela primeira vez não será causada por um asteroide ou uma mudança repentina da temperatura da Terra. A causa do próximo cataclismo somos nós. Por ironia, o próprio pangolim, principal suspeito de ter introduzido o coronavírus entre os seres humanos, não resiste a nossa ação: está quase extinto.
O estranho é que somos também implacáveis com nossa própria espécie. Encontramos todos os tipos de argumentos políticos, econômicos, étnicos e culturais para justificar o abandono de outros seres humanos.
Ficar em casa durante a quarentena nos permite olhar o mundo sem nós. Animais silvestres que passeiam em ruas de grandes centros urbanos, diminuição de emissões de gases do efeito estufa e a melhora da qualidade do ar são presságios do que poderia ser a Terra sem o ser humano para atrapalhar.
A conclusão parece lógica: o problema somos nós. Se deixássemos de existir evitaríamos a tão temida sexta extinção e até as consequências da crise climática. Contada assim, a extinção da humanidade não parece uma ideia distópica, mas algo utópico, quase desejável.
Mas que humanidade seria essa? A do morador da favela ou a de Jeff Besos, o dono da Amazon? A do indigente que morre de insuficiência respiratória sem entrar nos mórbidos números oficiais ou o dos investidores da Black Rock? A do refugiado sírio confinado em um campo na fronteira entre a Turquia e a Grécia, ou a dos representantes da União Europeia, que decidem quem entra no espaço Schenguen?
A noção de antropoceno e a ideia da extinção da espécie humana como algo positivo compartilham a crença em uma humanidade homogênea. Mas se tem uma coisa que a pandemia que enfrentamos deixa clara é que apesar de parecermos iguais diante do vírus, somos bem diferentes em nossas possibilidades de sobreviver. Da maneira que nossa espécie se organizou, as sociedades e os indivíduos que se adaptam melhor às mudanças e às catástrofes, são também os mais ricos.
Se a humanidade deixasse de existir, provavelmente não seria uma extinção em massa. Os mais ricos, mais adaptáveis, se salvariam e provavelmente continuariam a alimentar modelos que os fizessem sobreviver por muito mais tempo.
Por isso, existe uma lógica perversa na ideia de que o homem como um grupo, uma espécie, é responsável por todos os problemas da Terra, funcionando como um vírus. Se consideramos a humanidade como uma praga para o planeta e que por isso deve ser extinta, a ideia de solidariedade com outras espécies deixa de existir e é substituída pela misantropia.
Talvez a nuance ausente na ideia do antropoceno é a que não é o ser humano como uma espécie única, uma praga sem vontade própria, o causador do problema ecológico, mas nosso modelo produtivo, que foi conscientemente construído e imposto ao mundo.
Não se trata apenas de pensar o ser humano como uma força destrutiva ou mesmo integrá-lo como uma força produtiva a uma natureza idealizada. O desafio é observar a responsabilidade de cada sociedade em relação à crise ecológica, que nada mais é que a crise de um sistema, de nosso modo de produção e organização social.
Da mesma forma que o problema ambiental não será solucionado com iniciativas individuais, ele não pode ser resolvido com um olhar homogeneizador, com o objetivo de apagar as diferenças entre os que estão dentro e os que não participam do sistema. Porque de nada adiante tentar resolver nosso problema com o mundo natural idealizado, enquanto não resolvermos o problema das hierarquias que existem dentro de nossa própria espécie.
Ana Carolina Peliz é jornalista, doutora em Ciências da Informação e da Comunicação pela Universidade Paris Sorbonne, especialista em comunicação e crise ambiental.
Ela escreve de Paris.
Para saber mais sobre o antropoceno:
Bonnuel, Christophe; Fressoz, Jean-Baptiste, L’événement anthropocène. La terre, l’histoire et nous, Paris: Le Seuil, 2013.
Crutzen, Paul J. Geology of mankind, Nature, Vol. 415, January, 2002.
Fressoz, Jean-Baptiste, Loosing the earth knowingly, In Hamilton, Gemenne and Bonneuil, The Anthropocen and the global environmental crisis, Routledge, 2014.
Moore, Jason W. (ed.), Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, PM Press, Oakland, 2016.